Até a manhã de quarta-feira (23), o barco já havia atendido mil pacientes - entre eles, moradores que viram um médico pela primeira vez na vida. No total, são 55 funcionários fixos e 21 voluntários médicos de todo o Brasil. Conheça o centro cirúrgico do barco-hospital São João XXIII
Com três andares, salas climatizadas, centro cirúrgico, laboratórios e consultórios, o barco-hospital São João XXIII chama atenção dos moradores da comunidade ribeirinha do distrito de Novo Remanso, em Itacoatiara (AM). É lá que ele faz sentido, onde são escassos os serviços de saúde.
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A embarcação, que surgiu de uma ideia do frei Francisco Belotti, presidente da Associação e Fraternidade São Francisco de Assis na Providência de Deus, com sede em Jaci (SP), atendeu ao pedido do papa Francisco durante uma visita que ele fez ao Brasil em 2013.
Atualmente, 12 anos depois, são três barcos-hospitais atendendo comunidades ribeirinhas na região norte: João Paulo II, São João XXIII e Papa Francisco. As expedições são feitas ao mesmo tempo, sendo duas por mês, uma no Pará e outra no Amazonas, oferecendo atendimento médico, odontológico, de enfermagem e cirurgias.
Conforme o coordenador das atividades, frei Alberto, a grande diferença entre os barcos é que a embarcação denominada Papa Francisco precisa do apoio do barco-hospital João Paulo II, ou seja, ambos navegam juntos.
Barco-hospital São João XXIII no distrito de Novo Remanso, em Itacoatiara (AM)
Desirèe Assis/g1
Já o São João XXIII consegue ter toda a estrutura dentro de uma única embarcação, além de mais salas equipadas. Um exemplo é que no Papa Francisco há apenas um centro cirúrgico, enquanto no São João XXIII são três, sendo um de oftalmologia, e 10 leitos de internações.
"A ideia de construir esse hospital é de poder chegar cada vez mais próximo das comunidades que não têm acesso à saúde. No Amazonas, há uma grande distância para chegar. Temos comunidades que duram até 15 dias para que o barco chegue para levar essa assistência. Então, há essa diferença de estados", reflete o frei.
Frei Alberto ajuda nos atendimentos das comunidades ribeirinhas em Novo Remanso, distrito de Itacoatiara (AM)
Desirèe Assis/g1
Mais do que remédios e exames gratuitos, o projeto trouxe dignidade, alívio e a chance de uma vida melhor para 15,8 mil habitantes ribeirinhos da comunidade em Novo Remanso, que tem, por sete dias, um hospital ancorado na "porta de casa" e pode receber ajuda e compartilhar histórias que, muitas vezes, esperou uma vida inteira para que fossem ouvidas.
Neste ano, equipes do g1 e da TV TEM, afiliada da TV Globo em São José do Rio Preto (SP), acompanham a expedição, que ocorre de 17 de abril até esta quinta-feira (24). Somente até a manhã de quarta (23), o barco já havia atendido mil pacientes e feito 1,4 mil consultas e mais de 3,1 mil exames, além de 1,3 mil procedimentos odontológicos.
Profissionais da Saúde organizam medicamentos distribuídos para a população ribeirinha em Novo Remanso, distrito de Itacoatiara (AM)
Desirèe Assis/g1
Primeira vez em um médico
Por dentro, o barco é um verdadeiro hospital. Nos dois andares, entre um consultório oftalmológico e outro de mamografia, há pacientes que são atendidos pela primeira vez na vida.
Um exemplo é Jussara Barroso, de 44 anos, moradora de Novo Remanso, que, com cinco filhos, passou pela primeira vez em consulta com a psiquiatra junto à filha, Ana Lívia Barroso, de sete anos, que também recebeu encaminhamento para uma cirurgia de hérnia inguinal.
Jussara esperou com a filha desde 20h de sábado (19) na fila e recebeu atendimento na manhã do domingo de Páscoa (20). Conforme a mulher, a Unidade Básica de Saúde (UBS) não comporta tantas especialidades médicas, o que reforça a importância da missão dos voluntários.
"Optei por conseguir uma ficha para psiquiatra, devido a estar um pouco sobrecarregada, e alguns sintomas que venho tendo, para ver o diagnóstico. Eu queria também conseguir uma cirurgia [para a Ana], devido às hérnias que estão grandes, e ela é criança, ela gosta de pular, brincar na escola. E esses tempos eu não deixo ela fazer exercícios físicos, porque fica grande", comenta a mãe.
A responsável pelo atendimento é a psiquiatra de Pereira Barreto (SP) Patrícia Afonso de Almeida, uma das voluntárias do barco. Segundo ela, o desejo de estar junto à tripulação da embarcação surgiu após conhecer o trabalho desempenhado pela associação no noroeste de São Paulo.
"A população sofre. No interior, com essas distâncias muito longas, é muito vulnerável. Esse local de trabalho, de estar na comunidade e ter acesso às dificuldades que essas pessoas trazem e poder estar com elas, estar junto a elas é revitalizante", celebra a psiquiatra.
Patrícia Afonso de Almeida, psiquiatra do barco-hospital São João XXIII
Desirèe Assis/g1
Patrícia conta que os atendimentos mais impactantes envolvem violência doméstica, financeira e psicológica, cujas vítimas são mulheres em vulnerabilidade. Após o primeiro contato com as pacientes, a profissional as encaminha para acompanhamento contínuo com agentes de Saúde locais e recomenda medicações.
Jornada dos profissionais
Criado para reforçar a assistência médica nas comunidades, o barco foi inaugurado em dezembro de 2024 e fez a primeira viagem naquele mesmo mês. Com ele, a associação entrega ao norte do país mais um hospital flutuante.
A embarcação possui três andares e uma estrutura hospitalar completa, com 14 leitos - sendo 10 de internação e quatro de recuperação pós-anestésica. Além disso, conta com salas de cirurgia para oftalmologia, videocirurgia, ultrassom, mamografia, raio-X, farmácia, enfermaria, sala de coleta e triagem.
A bordo, uma equipe incansável, que faz da medicina um gesto de empatia. E que, mesmo em meio ao calor, à exaustão e aos desafios logísticos, encontra forças no que mais importa: cuidar da saúde da população desassistida.
O barco, além de ser hospital, também é ponte - entre o isolamento e a saúde, entre o abandono e o cuidado. No total, são 55 funcionários fixos, desde a limpeza, cozinha e enfermagem até técnicos, e 21 voluntários médicos de todo o Brasil, que embarcam na expedição movidos não por salário, mas por vocação e amor ao próximo.
À TV TEM, o médico e diretor-técnico do barco, responsável pela captação dos voluntários, Gustavo Bueno Vieira, explicou que a demanda de profissionais é diversificada. Uma vez que demonstram interesse, eles são captados pela sede, localizada em Jaci.
"Quando a gente se depara com uma realidade na qual não há esse tipo de acesso, a gente vê verdadeiramente a medicina sendo resolutiva. Eu costumo dizer para todo mundo que participa que é uma viagem transformadora. É a essência da medicina: o cuidado com o próximo", conclui o médico.
Diretor-técnico do barco-hospital São João XXIII em Novo Remanso, distrito de Itacoatiara (AM)
Desirèe Assis/g1
Mesmo com a estrutura completa, ar-condicionado em algumas áreas, equipamentos e medicamentos, o desafio maior é lidar com o contraste: levar medicina moderna para onde o tempo parece andar mais devagar.
Apesar do cansaço, da saudade da família e da pressão de atender dezenas de pessoas por dia, os voluntários acordam dispostos todos os dias. No fim da tarde, quando o último paciente é atendido, frei Alberto comenta sobre o alívio da missão cumprida.
"Eu falo que, para mim, é um privilégio poder contribuir com essa missão, estando à frente, contribuindo e ajudando a mudar a vida das pessoas e também a mudar a nossa vida. Nos tornamos cada vez mais humanos fraternos, um ser humano mais próximo das pessoas. A gente, sempre que vem a uma missão, a gente volta diferente, renovado e na perspectiva de querer continuar", reflete o frei.
Última parada: farmácia
Medicamentos disponíveis na farmácia do barco-hospital São João XXIII, atracado em Novo Remanso, distrito de Itacoatiara (AM)
Desirèe Assis/g1
Depois de passarem pelas consultas e exames, os pacientes seguem para o último espaço do barco: a farmácia. Em uma pequena sala com prateleiras organizadas, mais de 170 medicamentos são entregues gratuitamente.
Para quem vive em comunidades onde remédios são artigos de luxo, receber o tratamento completo no mesmo dia é um marco.
"O barco é um ciclo fechado, em que o paciente entra para fazer o seu primeiro atendimento, mas ele só termina quando nós conseguimos diagnosticar tudo o que ele precisa. O barco garante um atendimento resolutivo", completa o frei.
Além de antibióticos, anti-inflamatórios, psicotrópicos e remédios para dor, a farmácia do São João XXIII oferece pomadas, vitaminas, anticoncepcionais, corticóides e colírios.
Em uma comunidade onde o acesso à saúde é escasso, a farmácia do barco-hospital é o ponto final de um ciclo de cuidado transformador.
Frei Matias ao lado de paciente do barco-hospital São João XXIII atracado em Novo Remanso, distrito de Itacoatiara (AM)
Desirèe Assis/g1
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