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Fazer perguntas para IAs pode evaporar água suficiente para abastecer cidades; governo quer atrair data centers com isenção de impostos


Estudo mostra que 20 a 30 perguntas à IA consomem meio litro de água. Governo quer atrair data centers com isenção de impostos e especialistas questionam impacto ambiental. ChatGPT gasta meio litro de água para responder de 20 a 30 perguntas

Getty Images via BBC

Fazer de 20 a 30 perguntas para uma plataforma de inteligência artificial pode evaporar o equivalente a meio litro de água potável. Longe dos computadores e celulares, todos os dados processados pelas IAs passam por data centers que consomem muita energia e milhares de litros de água para se resfriarem. O uso de água é um dos pontos de debate por trás da ação do governo brasileiro, que tenta atrair a instalação desses centros no país com a promessa de redução de impostos.

🔎 Os data centers são espaços onde ficam os servidores usados para processar, gerenciar e armazenar grandes volumes de dados digitais. É deles que saem as respostas que o ChatGPT, por exemplo, te dá. Esses centros exigem uma infraestrutura robusta, com alto consumo de energia e sistemas de resfriamento que utilizam água potável.

Uma pesquisa feita no ano passado, na Califórnia, analisou a água usada tanto na geração de energia quanto no resfriamento dessas máquinas para estimar o gasto do ChatGPT. O que os cientistas descobriram é que, a cada comando com 20 a 50 perguntas, meio litro de água potável evapora.

Se o número parece pequeno, é preciso lembrar que a ferramenta tem 400 milhões de usuários semanais. Se todos se limitassem a esse volume de comandos, a água usada seria suficiente para manter cidades brasileiras inteiras por pelo menos um dia.

Abaixo, nesta reportagem, o g1 explica:

Como a IA consome água?

O plano do Brasil com data centers

Quais são os riscos ambientais apontados

O que dizem as empresas

🔴 Os data centers não processam apenas as IAs, mas também outras tecnologias. No entanto, desde a chegada das ferramentas de inteligência artificial, o consumo de água vem registrando recordes. (Veja mais abaixo)

➡️ O governo brasileiro enviou representantes para os Estados Unidos em uma jornada de encontros para atrair empresas para o país e instalarem seus data centers. Para isso, o país quer oferecer menos impostos para quem quiser vir ao Brasil.

A promessa é de que, no Brasil, as empresas poderiam operar com menor impacto ambiental. A maioria dos data centers hoje está em países cuja matriz energética depende de combustíveis fósseis — e, aqui, a base é hidrelétrica, que não geraria emissões de carbono.

No entanto, especialistas alertam para os impactos ambientais com o aumento exponencial da demanda por água e energia em um país que enfrentou, em 2024, a pior seca da história. O plano apresentado por Haddad — e que ainda não foi publicado — teria sido discutido apenas entre as pastas econômicas do governo, sem consulta ao Ministério do Meio Ambiente.

Como a IA consome água?

Para além da interface exibida na tela, cada comando enviado a uma ferramenta de inteligência artificial é processado em data centers. A IA é uma tecnologia que exige intenso poder de computação — e, por isso, consome grandes quantidades de energia.

IA usa meio litro de água por comandos de 20 a 50 respostas

Arte/g1

🔴 Esse alto consumo gera calor nos equipamentos, que precisam ser resfriados para evitar o superaquecimento. Hoje, a principal tecnologia usada nesse processo utiliza água doce, que circula entre os sistemas. Toda essa água acaba evaporando depois.

Pesquisadores da Universidade da Califórnia analisaram a “pegada hídrica” do modelo GPT-3. Como a empresa responsável pela ferramenta não divulga o volume de água consumido, os cientistas estimaram os dados com base no uso de energia e nos sistemas de resfriamento.

Segundo o estudo, entre 20 e 50 perguntas feitas a um chatbot como o ChatGPT podem evaporar o equivalente a meio litro de água potável.

Atualmente, o ChatGPT tem 400 milhões de usuários semanais. Se cada um fizesse entre 20 e 50 perguntas, o consumo estimado seria de 200 mil de litros de água por semana.

🚰 Para entender a dimensão de toda essa água, analisamos o consumo diário de água nas cidades brasileiras por pessoa, com base nos dados do Instituto Trata Brasil. O valor usado em alguns comandos para a inteligência artificial seria o bastante para manter a população de cidades inteiras por um dia. Veja:

Guarulhos (SP): consome 170 milhões de litros de água por dia

Dourados (MS): consome 33 milhões de litros de água por dia

João Pessoa (PB): consome 116 milhões de litros de água por dia

Juiz de Fora (MG): consome 93,03 milhões de litros de água por dia

Niterói (RJ): consome 104,29 milhões de litros de água por dia

Sorocaba (SP): consome 126,99 milhões de litros de água por dia

Boa Vista (RR): consome 63,78 milhões de litros de água por dia

O especialista em inteligência artificial Diogo Cortiz explica que essas ferramentas exigem grande esforço computacional, o que eleva a demanda por energia e, consequentemente, por água para resfriamento. Ele reforça que, além do uso durante as interações, milhares de litros também são consumidos no processo de treinamento desses sistemas.

Essa estimativa é apenas da operação. Se pensarmos todo o processo de treinamento dessa inteligência, que leva meses, o consumo é ainda maior. Enquanto a tecnologia melhora, aparecem novas opções que usam ainda mais recursos.

Não é só a inteligência artificial que precisa de um data center para funcionar. Até mesmo as redes sociais processam seus dados nesses sistemas. No entanto, desde o avanço da IA, a demanda por água e energia vem atingindo recordes.

Segundo o Google, que tem o Gemini como ferramenta de IA, foram necessários 6,4 bilhões de galões de água para manter sua estrutura em 2023 — o equivalente a 24 bilhões de litros. É o maior volume desde 2019, antes do lançamento da ferramenta.

O mesmo aconteceu com a Microsoft. A empresa declarou ter usado 12,951 bilhões de litros de água — o maior número já registrado nos últimos anos e que evidencia a diferença no consumo antes e depois da chegada da IA.

Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, apresentou plano do governo nos EUA

Adriano Machado/ Reuters

O plano do Brasil com data centers

O uso de recursos naturais com o crescimento da inteligência artificial vem se tornando uma preocupação para as big techs, que têm enfrentado pressão crescente. Em alguns países, o consumo de água ainda se soma ao problema da emissão de carbono, já que estão localizados em regiões cuja matriz energética depende de combustíveis fósseis — e é aqui que o plano do governo brasileiro pretende entrar.

Neste mês, o ministro Fernando Haddad esteve em um evento na Califórnia para apresentar os planos do governo federal de abrir espaço para a instalação de data centers. A estratégia foi posicionar o Brasil como um destino competitivo e sustentável para novos investimentos em infraestrutura digital.

💰 A proposta do Plano Nacional de Data Centers (Redata) é atrair R$ 2 trilhões em investimentos para o país na próxima década. Para isso, o governo alinhou o discurso em duas frentes:

Disse que vai enviar ao Congresso para instituir a Política Nacional de Data Centers. O texto prevê a isenção de impostos sobre equipamentos importados e a exportação de serviços do setor.

E tem se apresentado às empresas como uma solução sustentável, já que a matriz energética do país é hidrelétrica e, portanto, sem emissão de carbono.

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Os impactos ambientais

Apesar das apresentações às big techs, o plano que está sendo vendido ainda não foi publicado. Com isso, não é possível saber se há — e quais seriam — as exigências feitas às empresas. Além disso, segundo fontes ouvidas pelo g1, ele foi elaborado sem diálogo com o Ministério do Meio Ambiente.

🔴 A preocupação é que se abram as portas para as big techs no país sem estudos de impacto e sem salvaguardas ambientais. Os principais pontos levantados são: o consumo elevado de água, a alternativa com maior demanda por energia e os efeitos nas regiões com risco hídrico.

A instalação de um centro como esse pode elevar rapidamente a demanda por recursos, sem que haja tempo hábil para pensar em adaptações.

Data center nos Estados Unidos

Reuters

🔴 Por exemplo, em Iowa, nos Estados Unidos, em julho 2022, durante o treinamento de uma das versões do GPT, a Microsoft bombear cerca de 41 milhões de litros de água para seu conjunto de datacenters. Isso significa 6% de toda a água do distrito em um mês.

Em 2024, o Brasil enfrentou a pior seca da história. A falta de chuva derrubou os níveis nas bacias hidrográficas, e o governo chegou a anunciar medidas de contingência, como o aumento do uso de usinas termelétricas — que são movidas a combustíveis fósseis e mais poluentes.

Ao longo dos anos, as estiagens têm se tornado mais intensas e menos espaçadas — reflexo das mudanças climáticas. Com isso, especialistas levantam um ponto de atenção: há preocupação com a segurança hídrica?

Não podemos permitir que seja tudo feito pensando apenas no negócio. Essas empresas podem causar estresse hídrico em regiões que não eram afetadas e piorar o cenário onde água é um recurso já em falta.

Além disso, o país tem áreas específicas de vulnerabilidade, como o Nordeste. Especialistas apontam que seria necessário incluir estudos de impacto de longo prazo antes de permitir novas instalações. Isso porque as empresas admitem que parte da água usada nesses sistemas vem de regiões sob estresse hídrico — ou seja, onde não há água suficiente nas bacias para atender à demanda.

🔴 Em seu relatório de 2023, a Microsoft afirmou que 42% da água utilizada veio de “áreas com estresse hídrico” — regiões sem abundância de água e que enfrentam ciclos recorrentes de seca. No caso do Google, 15% da água consumida teve origem em bacias com alta escassez hídrica.

Antes de pensar em atrair as empresas, tínhamos que pensar em estudos que analisem e que pudessem subsidiar a política pública e nos dizer se é seguro e onde é seguro. No cenário de Brasil que enfrentamos, não dá para ignorar a questão climática.

Brasil enfrentou pior seca da história em 2025

REUTERS/Bruno Kelly

Julia ainda critica a posição do governo de não tornar público o plano antes de apresentá-lo às empresas, impedindo a participação de especialistas e da sociedade civil em uma discussão que pode ter impacto direto.

No Brasil, no fim de 2024, uma empresa anunciou R$ 3 bilhões em investimentos para a instalação de um data center voltado ao processamento de dados de inteligência artificial no Rio Grande do Sul. A cidade escolhida foi Eldorado do Sul, às margens do Guaíba.

🔴 O estado vem sendo afetado pela seca e é o mais impactado da Região Sul. Segundo dados do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), as bacias hidrográficas do Rio Grande do Sul estão em condição de seca extrema.

Luana Pretto, presidente-executiva do Instituto Trata Brasil, lembra que há milhões de brasileiros sem acesso a água nas condições atuais e que pensar na gestão do recurso hídrico para a população é urgente.

"No Brasil ainda temos 32 milhões de pessoas sem acesso à água tratada. Isso em um cenário onde a gente tem uma elevação da temperatura do planeta, crescimento populacional. Então, a gestão dos recursos hídricos já é um desafio".

Ao g1, o Ministério do Meio Ambiente informou que irá participar do processo de regulamentação da Política Nacional de Data Centers, mas não detalhou quais serão as salvaguardas e contrapartidas ambientais previstas para as empresas.

O g1 procurou o ministério da Fazenda, mas não teve retorno até a publicação.

Existem alternativas?

As empresas sabem que para evoluir, precisam de mais energia e água. O CEO da OpenAI, Sam Altman, chegou a dizer isso publicamente.

Em abril, um relatório da Agência Internacional de Energia (IEA) deu sinais do que esperar nos próximos anos: a previsão é que o consumo global de eletricidade dos data centers mais do que dobre até 2030, impulsionado pela inteligência artificial.

🔴 A estimativa é de que a demanda passe de 415 TWh (terawatts-hora) para 945 TWh por ano — mais do que todo o consumo de energia do Japão.

Com a escassez dos recursos no mundo, que enfrenta a crise climática, elas têm se mobilizado para buscar alternativas tanto para ampliar suas operações, quanto para gerar menos impacto. Algumas anternativas são:

Desenvolvido de tecnologias que tornem as máquinas menos dependente de água, com novos sistemas de resfriamento. A Microsoft publicou um estudo que identificou que sistemas com placas de resfriamento poderia reduzir o consumo de água em 30%. A ideia é implantar no futuro.

Sistemas de resfriamento por ar, que usam o ar ambiente em vez de água.

Investindo em energia solar.

Parceria com empresas para reutilizar água industrial e não mais potável.

A Microsoft vinha testando um projeto de data center no mar, a pesquisa chegou a ser feita por alguns anos, mas a iniciativa foi descontinuada. Com isso, as propostas vigentes pela maior parte das empresas ainda não estão tão perto de acontecer.

O especialista em inteligência artificial Diogo Cortiz explica há possibilidades de que a própria IA ajude a compreender e chegar a resultados de uma operação com menos impacto, mas que isso é uma resposta que pode surgir no futuro.

É possível que com o tempo, a IA nos ajude a encontrar soluções para que a tecnologia fique mais eficiente, econômica. Mas não temos como projetar quando isso pode acontecer. Até lá, a tendência é que esse consumo continue crescendo.

O engenheiro da computação e professor no Instituto Mauá, Rudolf Buhler, reforça que as perspectivas do país em atrair esse tipo de tecnologia são boas, desde que haja exigência e fiscalização para as metas ambientas.

As perspectivas são boas, desde que haja exigência técnica nos incentivos. Se o governo quiser realmente atrair investimento sustentável, precisa atrelar os benefícios fiscais a metas ambientais claras, como eficiência energética, reaproveitamento de água e uso de energia limpa. Do contrário, corremos o risco de atrair projetos com alto custo ambiental em nome da digitalização.

Atualmente, as empresas têm investido esforços em ações de “devolução”, que distribui água em áreas pelo mundo com vulnerabilidade hídrica para compensar o uso. Mas isso não garante a solução do problema nos locais impactados por elas.

Cortiz ressalta que a demanda por água e energia é um ponto central para a sustentabilidade dos negócios — e que isso, sim, impulsiona parte das soluções. Mas enquanto houver disponibilidade de recursos, eles continuarão sendo usados.

Enquanto houver recurso e eles puderem explorar, independente do custo de compensação, eles vão fazer isso. A gente precisa pensar na tecnologia como meio de ser mais eficiência e o impacto ambiental é o oposto disso. A gente tem que cobrar políticas públicas e regulação para que haja limites.

O g1 procurou a OpenAi, o Google e a Microsoft.

O Google informou que “se esforça para construir a infraestrutura de computação mais eficiente em termos de energia, apoiada por práticas responsáveis de uso de água e um compromisso de minimizar o desperdício”. A empresa informou que com projetos de gestão de água reabasteceu 18% do consumo de água doce em 2023.

A OpenAi e a Microsoft não responderam aos questionamentos.

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