Denúncias quintuplicaram nos últimos 10 anos e órgão critica a contratação de PJs para cumprir as mesmas obrigações de um empregado com carteira assinada. Número de denúncia de ‘pejotização’ quintuplicaram em 10 anos, revela Ministério Público do Trabalho
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As denúncias sobre “pejotização” no Ministério Público do Trabalho (MPT) quintuplicaram nos últimos 10 anos, passando de 376 registros em 2014 para quase 2 mil no ano passado, segundo o órgão.
Os números englobam casos de pessoas que foram contratadas como pessoas jurídicas (PJ), mas que afirmam cumprir todas as obrigações previstas na legislação para um funcionário com carteira assinada, explica Renan Bernardi Kalil, coordenador nacional de Combate às Fraudes nas Relações de Trabalho (Conafret) do MPT.
Assim, apesar de atuar na prática como empregado da empresa, o trabalhador não tem direito a férias remuneradas, 13º salário, aviso prévio, FGTS, pagamento de horas extras, seguro desemprego, entre outras garantias previstas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
O debate sobre a pejotização voltou a repercutir nos últimos dias, impulsionado por uma decisão do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que pausou a tramitação de todos os processos judiciais relacionados ao tema no país.
Há um impasse entre o Supremo e a Justiça do Trabalho. Enquanto juízes têm decidido contra a pejotização, o Supremo já se mostrou favorável ao modelo de trabalho. (leia mais abaixo)
Renan Kalil, do MPT, afirma que contratar um PJ, por si só, não é um problema, mas defende que ele precisa ter autonomia para prestar seus serviços à empresa.
O contrato pode ser considerado uma fraude trabalhista pelo MPT se essa liberdade de atuação do prestador for comprometida, como a obrigação de cumprir horários estabelecidos pela empresa, participar de reuniões internas e obedecer às ordens de um chefe, por exemplo.
Nesse caso, pode-se entender que o trabalhador não foi contratado como PJ para realizar uma atividade empresarial independente, mas como uma estratégia da contratante para burlar o pagamento de encargos trabalhistas e reduzir os custos.
O procurador lembra, inclusive, que é possível encontrar inúmeras ofertas de trabalho nas redes sociais que apresentam fortes indícios de fraude.
Se o trabalhador precisa ir à empresa e cumprir um horário, é possível imaginar que ele não terá autonomia. É bem provável que, ali dentro da empresa, ele vá receber ordens de alguém da empresa contratante.
Veja ainda nesta reportagem:
O que dizem empregados que trabalham “disfarçados” de PJ;
Para além dos trabalhadores, o impacto fiscal da pejotização;
Como a liberdade de escolha pode tornar a pejotização legal, para o STF.
O relato de quem trabalha ‘disfarçado’ de PJ 👩🏽💻
Paula* é um exemplo de profissional que atua no modelo de “pejotização”. Formada em cinema, ela trabalha em uma agência de publicidade, com contrato de pessoa jurídica (PJ), mas sem nenhuma autonomia.
Além de precisar responder diretamente às ordens de um gestor, ela tem horário de entrada e saída, precisa bater ponto, acumula funções, não recebe pelas horas extras feitas e tem “direito” somente a sete dias de férias após completar um ano de empresa.
Paula* não recebe nenhum benefício, como vale-transporte ou auxílio-alimentação, apenas o salário fixo. O equipamento que utiliza, como computador e celular, é da empresa. Porém, os gastos que tem para atendimento aos clientes é custeado por ela.
“Estou na busca de uma recolocação desde o ano passado, para que eu tenha carteira assinada, mas não está fácil”, diz a profissional, que revela também que a maioria dos empregos com registro que encontra estão pagando abaixo do piso salarial da área.
Antes de ser contratada pela agência em que trabalha, Paula* atuou como celetista por alguns anos. Quando foi demitida, precisou encontrar outro emprego e se deparou com um mercado totalmente pejotizado.
“Não sei o que acontece, parece que hoje em dia as empresas só querem contratar as pessoas de forma PJ”, explica Paula*, afirmando que atua dessa forma “por necessidade e não por concordar”.
Outra trabalhadora que passa por uma situação parecida é Beatriz*, que atua em uma clínica especializada no atendimento de crianças com transtorno do espectro autista (TEA). Assim como Paula*, ela tem um horário fixo de entrada e saída, bate ponto e até utiliza uniforme.
Porém, a trabalhadora não tem direito a nenhum benefício. A remuneração de Beatriz* não é fixa porque ela recebe por atendimento. “No início, quando eu entrei, era um salário fixo, mais a ajuda de custo, que seria do transporte”, diz.
“A empresa mudou esse formato e tirou o salário fixo. Colocaram para receber por atendimento e supostamente o nosso salário poderia aumentar porque tiraria o transporte desse valor”, completa.
Mas o salário de Beatriz* não aumentou. Segundo ela, seria necessário ter a agenda cheia de atendimentos do início ao fim do dia, sem faltas das crianças para terapia.
“Caso você tenha a agenda cheia e a criança falte, você ganha metade do valor. Caso você não tenha nenhuma criança na agenda, você não ganha nada. Porém, você tem que estar disponível, caso algum profissional falte, para substituir e ganhar aquele valor”, afirma.
Beatriz* também relata que um profissional é responsável por verificar se o trabalhador está presente.
A profissional considera que trabalhar como PJ tem suas vantagens, como a flexibilidade, mas sente falta dos benefícios e da segurança de um salário fixo. Além disso, Beatriz* planeja continuar neste modelo, mas busca melhores oportunidades.
“Se por acaso aparecer uma oportunidade com carteira assinada, com salário melhor e benefícios, eu também iria. Só por isso, por causa do salário fixo e dos benefícios. Caso contrário, ficaria como PJ”, completa.
Apesar de todas as polêmicas que envolvem o trabalhador PJ, existem pessoas que gostam e preferem esse modelo. É o caso de Amanda Gedra, de 32 anos, que é formada em Ciência da Computação e atua no desenvolvimento de sites e suporte a sistemas do terceiro setor.
Antes da pandemia, a desenvolvedora atuou por cerca de três anos na mesma empresa como funcionária celetista. Porém, com a chegada do vírus da Covid, a empresa transformou todos os empregados em PJ, mas seguindo com rotina CLT e emitindo nota fiscal.
Apesar de ser PJ, a rotina continuava a mesma com o trabalho presencial, férias remuneradas e 13º salário, mas sem bater ponto. Segundo Amanda, a mudança foi vista como vantajosa financeiramente por parte dos trabalhadores, pois o salário aumentou significativamente.
A única preocupação era com as questões previdenciárias, como a aposentadoria, que passou a ser responsabilidade individual de cada trabalhador. Durante a pandemia, Amanda saiu da empresa e passou a atuar como freelancer de forma mais independente.
Atualmente, a desenvolvedora organiza sua rotina de trabalho conforme suas prioridades e projetos, com total autonomia sobre horários e prazos. Amanda mantém dois contratos fixos mensais com empresas privadas, que garantem cerca de R$ 9 mil por mês.
Ela ainda complementa a renda com projetos avulsos, o que pode elevar significativamente os ganhos mensais. Amanda diz que não tem vontade de voltar a trabalhar sob o regime CLT, pois valoriza a liberdade conquistada através do trabalho independente.
“Não tenho nenhuma vontade, eu já desacostumei 100% a trabalhar com um chefe, com cobrança de uma empresa. Depois que se conquista essa liberdade, é muito difícil abrir mão de novo. Eu acho que eu voltaria para o CLT se precisasse muito, claro”, completa.
Apesar da liberdade, Amanda reconhece que o modelo PJ exige uma boa organização financeira, já que a renda pode variar muito de mês para mês.
Ela também ressalta a importância de manter um alto nível de profissionalismo, mesmo sem um chefe direto, para garantir novos projetos por meio de indicações.
Hoje, consigo ajustar a minha vida, porque a minha vida é mais importante que o trabalho. Quando você é CLT, o trabalho muitas vezes se torna a prioridade, exigindo constante atenção e resposta às cobranças.
O impacto fiscal da pejotização
Além do impacto direto aos trabalhadores, a pejotização também pode trazer consequências ao orçamento público, à medida que diminui a arrecadação de impostos, ressalta o procurador Renan Kalil, do MPT.
Quando um funcionário é contratado com carteira assinada, uma parte do seu salário é descontada automaticamente pela empresa para pagar uma contribuição ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
No caso de contratos PJ, não há essa exigência. Os próprios trabalhadores podem contribuir de forma autônoma ao INSS, se quiserem, ou garantir os benefícios previdenciários ao abrir um Microempreendedor individual – MEI. (veja abaixo os número CNPJs registrados entre 2009 e 2024)
Um estudo realizado pelos economistas Nelson Marconi e Marco Capraro Brancher, da Fundação Getulio Vargas (FGV), mostra que a arrecadação média gerada por um trabalhador celetista foi de cerca de R$ 25 mil em 2023, enquanto a gerada por um PJ foi de aproximadamente R$ 1,6 mil.
Assim, se metade dos trabalhadores CLT se tornassem PJs formais, a perda de arrecadação anual poderia chegar a R$ 384 bilhões, cerca de 16,6% da arrecadação federal de 2023, de acordo com a pesquisa.
A pejotização também pode prejudicar as cotas de contratação de pessoas com deficiência e aprendizes, destaca o MPT, pois, ao reduzir o número de funcionários, a empresa diminui a base de cálculo da reserva de vagas.
“As fraudes trabalhistas ainda inviabilizam políticas de proteção à mulher e à maternidade no trabalho, pois são incompatíveis com o status de pessoa jurídica, [...] e enfraquecem a política de combate ao trabalho escravo”, completou o órgão em nota.
A visão do STF
O ministro Gilmar Mendes suspendeu os processos sobre pejotização até que o STF profira uma decisão que deverá ser observada por todos os tribunais do país ao julgarem casos semelhantes.
Segundo ele, o STF já tem um entendimento firmado sobre o tema, mas a Justiça do Trabalho tem descumprido essa orientação, o que vem sobrecarregando o Supremo com uma série de reclamações contra as decisões no âmbito trabalhista.
Para o STF, a situação é a seguinte:
Em 2018, após a reforma trabalhista, o Plenário considerou, por sete votos a quatro, “lícita a terceirização entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas”.
Até então, só era permitido que uma empresa terceirizasse atividades-meio, ou seja, não ligadas à sua função principal. Uma fábrica de chocolates, por exemplo, poderia terceirizar os serviços de limpeza do prédio, mas não a produção de chocolates em si.
Apesar de a tese não tratar especificamente de pejotização, o Supremo tem usado esse entendimento para derrubar decisões da Justiça do Trabalho que identificaram fraudes trabalhistas em contratos de PJ.
O STF tem entendido que, se o trabalhador ganhar bem e for esclarecido sobre a sua forma de trabalho, é válida a contratação de um funcionário como PJ, mesmo quando preenchidos os vínculos de emprego, explica a advogada trabalhista Volia Bomfim, sócia do escritório GM Advogados & Volia Bomfim.
Para o Supremo, “você teve autonomia para escolher”, acrescenta a advogada trabalhista Renata Olandim, do escritório Machado Meyer.
“A gente sabe que por trás disso tem muita coisa: ‘Preciso alimentar a minha família’, ‘foi o que eu consegui’. Mas, nos termos de validade do contrato, você livremente optou por prestar seus serviços por meio de PJ”, explica.
*O nome dos entrevistados foram preservados para segurança dos mesmos.
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